sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

 



MARGEM DE MANOBRA

 

 A noite avançava e deixava o ar pesado, como se a maresia tomasse conta e o cheiro de peixe invadisse o espaço entre o quebra-mar e a calçada. Não havia lua e a noite parecia ainda mais escura e sombria.

Uma figura esguia de moça nova rompia o passeio e olhava de soslaio para a imagem da cidade ali, refletida na água da baía. Seus cabelos flutuavam e faziam ondas sob a face pálida e contrita.

De repente seu caminho e pensamento foram interrompidos por uma voz familiar e conhecida:

  • Maria, para onde vai com tanto pesar e essa expressão tão sofrida?
  • Que nada Orlandinho. Só estou pensando na vida. Tirei o dia para reavaliar meus pontos de vistas e minhas escolhas. A noite hoje está propicia.
  • Mas lhe vejo abatida.
  • Sim, talvez pela descoberta de uma série de mentiras. Você sabe como me sinto a esse respeito. Odeio mentiras. Principalmente quando elas partem de quem você sempre confiou. É uma traição e tanto.
  • Mas não se deixe abater minha amiga. Pelo menos isso já foi esclarecido não é? Já não há mais engano.
  • Contudo, isso machuca. A sensação de ter sido usada e ludibriada é asfixiante. O envolvimento emocional foi sincero e muito forte da minha parte. Infelizmente, não houve recíproca, mas pura dissimulação direcionada a interesse. Isso humilha.
  • Eu entendo minha cara. O que Você pretende fazer, agora?
  • Seguir vivendo. Sempre me bastei. Quando optei em morar aqui neste lugar maravilhoso, vim em busca de qualidade de vida. E vou tê-la. Às minhas custas e de mais ninguém. A ilusão de ter alguém que nos ame é pura estória da carochinha. Hoje, ninguém ama ninguém, com a exceção de alguns trouxas como eu que ainda acreditam em MAGIA . Hoje está tudo pasteurizado e marcado pelo sucesso inebriante e fugaz de carreira e dinheiro. Por isso, amar é para poucos. Como não pretendo aderir a essa mediocridade e misturar com gente desse tipo, estou redimensionando minhas prioridades na terrinha.
  • Você está certa.
  • Obviamente devo ter em mente uma margem de manobra. Minha nona dizia sempre “antes só do que mal acompanhada”. Esse será meu lema a partir de agora.
  • Você é um barato! Sempre lhe admirei por sua coragem e força para transpor as dificuldades. Você é uma vencedora. Vai superar isso logo, logo.
  • Para dizer a verdade, já superei. Não dá para ser infeliz num lugar desses. Vou devagar e sempre, sem abrir mão da minha dignidade. Mereço respeito. Não é qualquer carinha bonita ou beijinho que me faz abdicar de meus princípios. Depois, sabe como é, tenho anos de terapia e a cabeça em ordem. Não vou jogar tudo isso fora por nada nem por quem está fora do prumo
  • E seu trabalho, como está?
  • Perfeito. Nunca compus tanto. Meu site está cada vez mais popular e sei que tenho contribuído para dar um pouco de romantismo às pessoas. Muitos estão tomando gosto por poesias. Acho melhor isso do que ficar fechado inventando teses que ninguém lê e não serve para nada. É só masturbação cerebral e de ego, alem de enrolação de tempo.
  • Minha amiga está tarde e vou indo. Deixei a Camila terminando algumas anotações e vim dar uma caminhada para refrescar. Foi bom ter lhe encontrado. Boa noite.
  • Boa noite, Orlandinho. Manda um abraço a todos.
  • Boas…

 

Assim, Maria continuou seu passeio noturno na altura do Mar Aberto, sorvendo a brisa marítima que, naquela altura, estava limpa e fluídica. Seu olhar mirava o infinito do horizonte enegrecido. Uma paz enorme inundava seu peito. Sabia que tinha feito o seu melhor, em tudo que havia investido e vivido. Por isso a sensação de missão cumprida. A dor doída era apenas uma lembrança para não errar de novo e escolher melhor a criatura. Afinal, amar e amor não são para qualquer pessoa. Essa era a sua lição de vida.

O caminho de volta para casa e o vulto da moça recortado na paisagem da baía era apenas uma margem de manobra, para outros dias que viriam.

 

Ilhéus, 22 de Outubro de 2008. 23h42min

 


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